Salomão Ximenes aponta que decisão do MEC sobre o fim do Pecim não resolve a militarização da educação pública e cobra ação do presidente para conter o processo
por Agnes Sofia Guimarães, em Ponte
Carro-chefe do governo Bolsonaro na Educação, o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim) teve seu encerramento anunciado pelo Ministério da Educação (MEC) nesta quarta-feira (12/7), em circular enviada para as Secretarias Estaduais de Educação do país. De acordo com o documento, a transição deve acontecer ainda neste ano, dentro de um processo de “desmobilização do pessoal das Forças Armadas envolvidas na implementação e lotado nas unidades educacionais vinculadas ao programa, bem como a adoção gradual de medidas que possibilitem o encerramento do ano letivo dentro da normalidade necessária aos trabalhos e atividades educacionais.”
No entanto, o programa não representa o final do modelo de escolas cívico-militares no país, apenas da iniciativa financiada pelo governo federal e que, hoje, conta com a adesão de 216 unidades de ensino de todo o país. No modelo, militares participam da gestão escolar e da gestão educacional das instituições de ensino.
Em pesquisa, ainda em andamento, a professora Catarina de Almeida Santos, pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB) e que dedica seu estudo à militarização nas escolas, estima que há cerca de 800 instituições de ensino militarizadas no país, e o número pode já ter passado de mil, conforme explica em entrevista à Carta Capital.
Alguns estados, como o governo do Paraná, comandado por Ratinho Junior (PSD), e o governo de São Paulo, sob Tarcísio de Freitas (Republicanos), já confirmaram que vão implementar modelos próprios de escolas cívico-militares.
O posicionamento dos estados indica o atraso da decisão e a omissão do governo federal com o fenômeno da militarização nas escolas, aponta Salomão Ximenes, professor do Bacharelado em Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC), em entrevista à Ponte.
Pesquisador do CNPq e colaborador com a Rede Escola Pública e Unibersidade (REPU) e a Articulação contra Ultraconservadorismo na Educação, Salomão já atuou em diversos projetos de monitoramento sobre o processo de militarização nas escolas e da opinião pública a respeito da guinada conservadora na educação.
Um exemplo foi a pesquisa, encomendada pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) e pela Ação Educativa, que aponta que 72% da população confia mais em professores do que em militares. O estudo ainda traz que a indisciplina dos alunos — um dos principais argumentos para a presença de militares nas escolas comuns — é a menor das preocupações: apenas 10% dos entrevistados apontaram essa como o principal problema da educação pública. A falta de investimento pelo governo (28%) e a baixa remuneração dos professores (17%) são os problemas que mais aparecem.
Na entrevista, Salomão Ximenes destaca a importância de pensar sobre a militarização das escolas como uma questão intersetorial, e que implica, até mesmo, a necessidade de cobrar por respostas mais assertivas da Presidência da República a respeito da intervenção de militares na educação.
“O que as pessoas se preocupam não é com a indisciplina, mas com a precária infraestrutura das escolas e da falta de valorização e do apoio aos professores pra que eles possam lidar com os problemas. Eventualmente uma parcela da população apoia a militarização não pelas militarização em si e pela presença desses militares nas escolas, mas porque os programas de militarização das escolas, como o próprio Pecim, levam mais recursos pras escolas por uma decisão política de investir nesse programa porque o governo queria os governos estaduais legitimando a militarização do ensino.”, explica Salomão.
O pesquisador também aponta a preocupação com o abuso de autoridade e a dinâmicas racistas com alunos negros e periféricos que estariam por trás do modelo de disciplina propagados pelo militarismo nas escolas.
“O [ex-presidente] Bolsonaro alterou o decreto 88.777 de mobilização do pessoal militar, pra incluir a atuação escolar como atribuição militar. E só o Presidente da República pode reformular esse decreto, retirando essa atribuição. Se foi o Bolsonaro que fez isso, a pergunta sobre por que não há essa alteração no decreto deve ser feita ao Presidente da República”, critica.
Leia a seguir a entrevista na íntegra:
Ponte — Quais são os modelos de gestão educacional, no país, que trazem a presença das forças militares para o ambiente escolar?
Salomão Ximenes — É importante diferenciar as escolas cívico-militares das escolas militarizadas vinculadas às Forças Armadas, no caso federal, ao Exército. No caso, estas já exisitiam antes da expansão das escolas militares vinculadas às Forças Estaduais que estão se expandindo nos últimos anos, como aquelas ligadas ao corpo de bombeiros militares dos estados, ou às polícias militares nos estados.
Ponte — E essa expansão das escolas militares: podemos relacioná-la, de alguma forma, com o processo de transformar as escolas comuns em cívico-militares?
Salomão Ximenes —Sim, é bastante significativo que esse fenômeno de transformação de escolas comuns em escolas cívico-militares ou escolas militarizadas aconteça em paralelo a um processo de ampliação das escolas militares. Essas escolas militares, pela Constituição e pela legislação, têm um papel de formação precoce de quadros militares. Elas têm objetivos bem sinalizados, de formação de preparação de jovens que vão ingressar na carreira militar. Além disso, elas têm uma destinação de vagas, que privilegia os militares das Forças Armadas e aí, sobretudo, as escolas do Exército, que são o tipo de modelo que em geral se utiliza para propagandear esse modelo. Mas no caso dos estados, cada vez mais, Polícias Militares, Corpos de Bombeiros, também criam instituições de ensino com essa finalidade.
Ou seja, eu diria que nesse caso é até mais relevante observar os caminhos que essas entidades fazem para assegurar escolas especiais e públicas para os seus filhos, e isso tem alimentado na sociedade uma percepção equivocada de que essas escolas epossibilitam uma melhor qualidade para o sistema educacional. Na verdade são escolas segregadas, que atendem uma fração bastante específica da população.
Mas a despeito disso, qual é a relação que eu vejo? É que, além do fato de que esses processos acontecem em paralelo — das escolas militares e das escolas cívico-militares —, o Pecim e alguns programas estaduais mencionam que o seu objetivo é levar para escolas cívico-militares a qualidade que haveria nas escolas militares.
A outra base desse discurso é a institucionalização da disciplina, da ordem, da hierarquia nas escolas, como estratégia de enfrentamento nas situações que são entendidas como de indisciplina, ou seja, toda uma pedagogia tradicional e repressiva que é mobilizada como justificativa pra ampliação desses modelos cívico-militares.
Ponte — De fato se sustenta de que a população tem interesse em uma educação mais militarizada, tal como a ala mais conservadora da política tem indicado em seus discursos, sobretudo durante o governo Bolsonaro?
Salomão Ximenes — Alega-se genericamente que haveria um apoio popular, mas essa é uma afirmação falsa, uma manipulação de uma crença de senso comum. E isso ocorre por dois motivos, pelo menos:
O primeiro motivo é que há um viés nesse processo de consulta às comunidades, porque em geral quando nós ouvimos sobre o apoio popular se está mencionando na verdade o apoio as pessoas que frequentam as escolas militarizadas, ou seja, é um viés muito forte, pois as pessoas que frequentam as escolas militarizadas aderiram a esse processo voluntariamente, passaram por um processo de disputa de seleção pra participação nessas escolas, e as pesquisas mostram que as escolas que são militarizadas mudam completamente o perfil.
São escolas que antes atendiam mais alunos, e de repente elas passam a atender um número menor de alunos, são escolas que têm uma elevação do nível socioeconômico das pessoas que a frequentam, ou seja, elas produzem mais desigualdade, e os estudantes e as famílias que são críticos ou que não concordam, e querem que seus filhos tenham mais contatos a temas como enfrentamento ao racismo, respeito à diversidade de gênero e sexual, que fogem a uma perspectiva conservadora, vão sofrer constrangimento.
É o momento em que há a restrição das liberdades e dos direitos educacionais nas escolas transformadas, que agora passam a impor padrões de vestimenta, de cabelo, que levam a um controle das condutas dos corpos dos estudantes que, muitas vezes, precisam abrir mão de adereços, cabelo black power, da expressão de suas identidades que passam a ser reprimidas violentamente.
Então o que resta nas escolas militarizadas é uma população que tende a concordar mais com o modelo, e aí portanto há um viés nesse tipo de consulta. Ou seja, eventualmente a participação de pessoas que vão defender o modelo estando dentro da escola será maior do que o resto da parcela da população. E isso é confirmado por pesquisas de opinião, como a nossa realizada pela Ação Educativa com entidades parceiras.
O que as pessoas se preocupam não é com a indisciplina, mas com a precária infraestrutura das escolas e da falta de valorização e do apoio aos professores pra que eles possam lidar com os problemas. Eventualmente uma parcela da população apoia a militarização não pela militarização em si e pela presença desses militares nas escolas, mas porque os programas de militarização das escolas, o próprio Pecim, levam mais recursos para as escolas por uma decisão política de investir nesse programa porque o governo queria os governos estaduais legitimando a militarização do ensino.
Ponte — Por que podemos dizer que a decisão do MEC é omissa em relação à continuidade, ou não, das escolas cívico-militares, e até mesmo do fenômeno da presença militar nas escolas?
Salomão Ximenes — O meu maior receio é o ponto da nota técnica do MEC que deixa evidente uma autonomia aos estados sobre algo que compete a Constituição Federal e, portanto a União e ao MEC: a constituição diz que compete a União estabelecer as diretrizes e bases da educação. A decisão deveria resguardar as diretrizes nacionais da educação brasileira, que não preveem a militarização. É algo que deveria ser mais do que uma perspectiva de conceder autonomia, deveria haver um esforço de reafirmar a soberania da União sobre os estados.
É louvável que o MEC vá extinguir o Pecim, mas ele poderia fazer muito mais do que isso, atuando ativamente contra a militarização e fazendo uso do poder que a União tem de estabelecer as normas gerais da educação. E o resultado disso é uma omissão do Ministério da Educação, o que é bastante preocupante e contraditória. Como resultado disso, que no dia que o MEC anunciou, desse jeito, fomos dormir na quarta-feira, 12 de julho, com a perspectiva de mais escolas militarizada pelos estados.
Ponte —Então é uma omissão que vai muito além do MEC, quando pensamos no papel da União sobre o tema?
Salomão Ximenes — Eu diria que essa essa omissão passa pelo MEC nessa dimensão específica das normas educacionais, mas ela também passa pelo governo na sua interlocução com os organismos internacionais de direitos humanos — aqui valeria inclusive entender o que o Ministério dos Direitos Humanos acha disso. Também envolve o Ministério das Relações Exteriores, porque há posições de organismos internacionais altamente relevantes, como a Comissão Interamericana de Direitos humanos.
E última omissão diz respeito à regulamentação do papel das Forças Armadas mesmo. O [ex-presidente] Bolsonaro alterou o decreto 88.777 de mobilização do pessoal militar, pra incluir a atuação escolar como atribuição militar. E só o presidente da República pode reformular esse decreto, retirando essa atribuição. Se foi o Bolsonaro que fez isso, a pergunta sobre por que não há essa alteração no decreto deve ser feita ao presidente da República.
Ponte — Em termos jurídicos-institucionais, como o governo poderia ter agido de forma diferente?
Salomão Ximenes — A primeira coisa que se deveria ter feito é não ter demorado tanto a tomar essa decisão de extinguir o Pecim. Essa decisão deveria ter sido tomada nos primeiros dias de governo, assegurando algumas condições de transição das escolas.
Além disso, além de de uma decisão mais rápida, seria necessário que o Ministério da Educação adotasse uma política como nós defendemos lá na carta para a equipe de transição assinada pelo conjunto de entidades: um programa de desmilitarização. Porque são coisas diferentes. Uma coisa é extinguir apenas, outra coisa é ter um programa de desmilitarização das escolas. Esse programa precisaria vir acompanhado de um programa de de políticas de incentivo, de melhoria das condições de funcionamento das escolas e ampliação da qualidade e da gestão democrática nas escolas.
Nós chegamos inclusive a propor que esse programa de escolas cívicos-militares fosse, por exemplo, substituída por um programa de fortalecimento da gestão democrática das escolas. Esse programa incentivaria o conjunto das escolas, mas também as escolas militares a adotarem padrões de gestão democrática quanto à participação dos estudantes, das comunidades, e teria em contrapartida recursos financeiros, recursos técnicos que pudessem induzir a esse processo de desmilitarização.
Mas nada disso foi feito, ou seja, a decisão atual é uma chamada que vem tardia e limitada em termos institucionais, em que o governo federal decidiu não enfrentar claramente o problema da militarização em si.
O que diz o governo
Em relação ao ofício, o MEC confirmou à Ponte o encerramento do Pecim, mas afirmou que não vai disponibilizar porta-vozes para comentar sobre o tema.
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Lançamento do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim) em Brasília, em 5 de setembro de 2019 | Foto: Marcos Corrêa / PR